Que época louca é essa em que pessoas pegam carona na morte para se autopromover? 'Alguém morre e a gente viraliza'

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Que época louca é essa em que pessoas pegam carona na morte para se autopromover? 'Alguém morre e a gente viraliza'

Fã durante velório da cantora Marilia Mendonça November 6, 2021 - 6.nov.2021 - Ueslei Marcelino/Reuters

"Marília morreu. Arruma uma foto com ela e posta já. Vai bombar."


"Você viu o Paulo Gustavo? Gentee. Acha aquele vídeo com ele, dispara em todas as redes."
"Não temos foto com ela? Tudo bem, vai no genérico, uma homenagem, RIP, tipo isso."
"Alguém morre e a gente viraliza."

Poderíamos dizer que nascimento, casamento e morte sempre foram os três grandes rituais da vida humana. Eles sintetizam cruamente nossa estreita missão: nascer, reproduzir, morrer. Receber a vida, unir-se com alguém para transmiti-la, sair da vida. E partilhamos essas experiências, densas, com os outros humanos.

Dessa forma, nos contam escavações de ruínas antigas, elas se tornam eventos sociais. Às vezes mais discretos, às vezes mais apoteóticos, dependendo do dinheiro e da carência que cada um carrega. Queremos partilhar com o outro a alegria de uma esperança ou a dor da perda, e assim construir uma memória coletiva.

O que nossos tempos modernos nos contam é que, mais urgente que isso, precisamos aproveitar a oportunidade e inflar nosso ego midiático. Quanto mais conhecido o outro, melhor a oportunidade —claro, esse o jogo geral das redes da fama. O negócio é pegar carona na morte para se autopromover. Espetacularização da vida e agora da morte.


O detalhe é que a morte dói. Ela é tristeza e desolação, quase sempre. Seja alguém velho, com uma vida bem vivida e que soube deixar algo para lembrar. Seja uma criança, a dor de ceifar já na fonte. Seja uma pessoa jovem, no estouro da potência.

No fundo, a morte é algo que não conseguimos engolir a seco. Precisamos de metáforas —anjos, estrelas, águas, sementes, árvores— e de narrativas —os céus, os infernos, os castigos, os ciclos, os fluxos. É só você observar as redes sociais agora para visualizar o que estou falando.

Uma outra estratégia de defesa diante da morte é partir para um mecanismo avaliativo: professores e fiscais em ação. Fulano era assim e assado. Ou deveria ser assim e assado. Curioso, até mais jovem ou enrugado, mais magro ou mais gordo a gente acha relevante nessa hora. O que o morto fez vale muito ou vale pouco. É relevante ou é lixo. Seu nome morrerá ou permanecerá.

Está na moda ser "crítico", na era curiosamente hipernarcísica e superegoica que é a nossa. Curiosamente é modo de dizer, essas são as duas faces (da mesma moeda) que dialetizam. Me esforço sem parar pra construir um eu fetichizado porque tem um superego juiz me comparando com os Ideais de Eu à disposição no mercado.

Então me pergunto: que época louca é a nossa em que precisamos trabalhar para inflar o ego ou brincar de superego crítico diante da angústia da morte? Talvez isso tenha um preço. Para onde está indo o sofrimento que escondemos debaixo das pilhas de Egos Infladinhos a se exibir diante do olhar dos outros? Ou dos Superegos SuperCríticos que ficam dando nota pra todas as coisas que se apresentam? Depois dessa catarse, no escuro da solidão de cada um, não deve ser fácil.

Uma vez fui para o Atacama e tive a sorte de fazer uma observação do céu, a olho nu e com telescópios, e sem a luz da lua para ofuscar. Foi uma das coisas mais impactantes que já vivi. Sendo um deserto, é uma janela cósmica, límpida e seca, para se observar o que tem além de nosso planeta. Ficam lá os mais potentes telescópios do mundo, e tão complexos que captam a luz visível e o invisível, as diferentes radiações do vasto espectro.

O caso é que esses dias o projeto Alma descobriu água em uma galáxia a uma distância de 12,8 bilhões de anos-luz. Isso quer dizer que havia água lá há muito tempo, quase no início deste universo —o tempo necessário para viajar durante quase 13 bilhões de anos pegando carona na luz. Enquanto isso, diante do enigma da vida e da morte, patéticos humanos buscam enfeitar seus egos e exercitar seus superegos vorazes.

Maria Homem
Psicanalista e ensaísta, com pós-graduação pela Universidade de Paris 8 e FFLCH/USP. Autora de "Lupa da alma" e "Coisa de menina?".

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